Quando deploráveis se tornam ingovernáveis

Quando deploráveis se tornam ingovernáveis

China, Rússia e Irã são as três principais “ameaças” existenciais aos EUA, segundo a Estratégia Nacional de Segurança (National Security Strategy). Três traços caracterizam as três principais potências: as três são potências soberanas. Estão as três sob diferentes graus de sanções. E as três são os nodos principais do processo geopolítico mais importante do século XXI: a integração da Eurásia.

O que as três potências soberanas veem, ao examinar a distopia que tomou conta do Excepcionalistão?

Veem, mais uma vez, três nodos – confusos, desentendidos – em conflito: as costas pós-históricas do Pacífico e do Atlântico; o Sul – uma espécie de Dixieland [NR] expandida; e o Centro-oeste – que seria a terra central dos EUA.

Os nodos Pacífico-Atlântico hipermodernos congregam finanças e high-tech, lucro dos avanços tech do Pentágono e benefícios a auferir do etos “EUA governam as ondas” que garantem a primazia global do EUA-dólar.

O resto dos EUA é considerado quase todo, pelo Pacífico-Atlântico, como nada além de uma coleção de estados flutuantes: o Sul – que se toma, ele próprio, pelos reais e autênticos EUA; e o Centro-oeste, bem disciplinado e de mentalidade prática, espremido ideologicamente entre as fábricas do litoral e o Sul.

Mas a superestrutura é chave: não importa o que aconteça, sejam quais sejam as fraturas, ainda é um Império, onde só reina uma pequena elite, uma oligarquia plutocrática de fato.

Seria demasiado esquemático, embora correto na essência, afirmar que na eleição presidencial o candidato invisível Joe Biden representava os nodos do Pacífico-Atlântico; e Trump representava todo o Sul. Assumindo que a eleição não foi fraudulenta – e isso permanece um grande “se” – o Centro-oeste oscilou, baseado em três questões.

1. Trump, que dependeu de sanções monstro, não conseguiu trazer empregos manufatureiros de volta para os EUA;
2. Trump não conseguiu reduzir a presença militar em todo o Grande Oriente Médio; e
3. E, antes da Covid-19, Trump não conseguiu reduzir a imigração.

Tudo o que haja adiante aponta para o irreconciliável – joga a absoluta maioria que votou nos Democratas nos nodos Atlântico-Pacífico versus o Sul e um Centro-oeste profundamente dividido. Dado que Biden-Harris estão decididos a isolar ainda mais o sul, a possibilidade de que “pacifiquem” o Centro-oeste está abaixo de zero.

Quem controla o terreno?

À parte as furiosas discussões sobre se houve fraude ou não na eleição presidencial, eis os pontos factuais chaves.

1. Uma série de regras na maioria dos estados oscilantes foram mudadas, por decisão de cortes de justiça, que atropelaram legislativos estaduais, sem transparência, antes da eleição, pavimentando a trilha para facilitar esquemas fraudulentos.
2. Biden foi coroado de fato pela [agência de notícias] AP, pela Google e pelo Twitter, já antes do resultado final oficial, e semanas antes da votação no Colégio Eleitoral, que aconteceu na 2ª-feira passada.
3. Qualquer e todas as auditorias sérias, profissionais, para determinar se todos os votos recebidos e tabulados eram votos válidos foram, de fato, esmagadas.

Em todas as latitudes do Sul Global onde o império realmente “interferiu” em eleições locais, à moda revolução colorida, o mesmo conjunto de fatos seria visto por legiões de funcionários do império, em furiosa, incansável blitz de propaganda, como evidência de golpe.

Sobre a recente decisão da Suprema Corte, uma fonte da inteligência do Deep State disse-me que “a Suprema Corte não gostou de ver metade do país em rebelião contra os juízes, e preferiu que a decisão ficasse por conta de cada estado, na Câmara de Representantes. É o único modo de lidar com isso, sem pôr em risco a união. Até Democratas proeminentes já se dão conta agora de que, sim, houve fraude. O erro foi roubar votos  demais. O grande roubo compromete todo o sistema, que sempre foi corrupto.”

Há perigos por todos os lados. No front de propaganda, por exemplo, nacionalistas de extrema direita estão absolutamente convencidos de que a mídia dos EUA pode ser posta de joelhos e que bastaria para isso se ocuparem os escritórios dos seis maiores conglomerados, plus Facebook, Google e Twitter: e aí estará a máquina de propaganda dos EUA perfeitamente controlada.

Outra fonte no Deep State, já aposentado, acrescenta que “o exército dos EUA não quer intervir, porque há o risco de os soldados não obedecerem ordens. Muitos desses nacionalistas de extrema direita foram oficiais das forças armadas. Sabem onde estão os mísseis e bombardeiros nucleares. Muitos se alinharam com eles, com os EUA dividindo-se em lockdowns. 

Entrementes, os negócios sujos de Hunter Biden não escaparão por milagre, do escrutínio da opinião pública. Hunter responde a quatro diferentes investigações federais. A mais recente intimação tem a ver com caso grave de possível ação criminosa da família. Está sendo convenientemente esquecido que Joe Biden vangloriou-se no Council on Foreign Relations de que teria forçado a demissão do procurador-chefe da Ucrânia, Viktor Shokin, exatamente quando investigava acusações de corrupção contra o fundador da Burisma Holdings.

Claro, um exército monstro de bajuladores sempre invocarão outro exército de oniscientes e muito ‘imparciais’ “verificadores de fatos” para martelarem juntos a mesma mensagem: “Essa é a versão de Trump. A Corte já disse claramente que não há provas.”

O Promotor Distrital William Barr está agora fora do quadro (aqui, sua carta de renúncia ). Barr é conhecido homem de Daddy Bush, desde os tempos da CIA – o que significa Deep State clássico. Barr sabia tudo sobre as investigações federais de feitos de Hunter Biden desde 2018, cobrindo possível lavagem de dinheiro e subornos.

Pois o Wall Street Journal noticiou, em termos deliciosos, que [Barr] “trabalhou para evitar que os fatos viessem à tona durante a intensa campanha eleitoral”.

Matéria devastadora (para os Democratas, “matéria de ataque dos Republicanos”) mostrou como a família Biden teve conexões com uma vasta rede financeira com múltiplos ramos estrangeiros.

E há também Barr, que sequer se atreveu a dizer que havia razões suficientes para que o Departamento de Justiça abrisse uma investigação de longo alcance sobre fraude na votação, e deu por superadas todas as teorias de conspiração “sem fundamento”.

Vamos em frente. Aqui já não há o que encontrar, por mais que as provas se acumulem em pilhas – dentre outras, votos falsos, votos pós-datados, improbabilidades estatísticas, máquinas eletrônicas adulteradas, softwares ‘portas dos fundos’, depoimentos juramentados de pesquisadores, para nem falar da hoje já legendária suspensão da apuração na calada da noite, com a posterior aparição de montanhas de votos, que, por milagre, passaram de Trump para Biden.

Mais uma vez, aquele exército omnisciente e tããããão imparcial de “verificadores de fatos” dirá que ‘não há base factual’.

Revide perverso

Uma forma pervertida de revide já está em andamento, como cidadãos globais bem informados podem agora ver, perfeitamente clara: a espantosa profundidade e o alcance do poder do Deep State – decisor derradeiro do que acontece adiante, na Central da Distopia.

As duas vias são terríveis.

1. A eleição é confirmada, mesmo se considerada fraudulenta por quase metade da opinião pública nos EUA. Para citar O Cara [ The Dude ], aquele existencialista sem par, ficamos sem o tapete que sustentava a sala .
2. Se, antes de 20 de janeiro, a eleição for de algum modo derrubada, o Deep State entrará em modo “Choque e Pavor” para terminar o serviço.

Nos dois casos, Os Deploráveis se terão convertido em Os Ingovernáveis.

E ainda piora. Uma possível implosão da União – com convulsões internas que levem a um paroxismo de violência – talvez até acompanhado de explosão externa, como numa aventura imperial mal calculada.

Para as Três [nações] Soberanas – Rússia, China e Irã – e para a ampla maioria do Sul Global, a conclusão é inescapável:   se o atual triste espetáculo a que estamos assistindo é o melhor que a “democracia” liberal ocidental tem a oferecer, ela definitivamente não carece de inimigos nem de “ameaças”.


O original encontra-se no Asia Times e em Strategic Culture Foundation , a tradução em https://duploexpresso.com/?p=116527
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Nenhuma escapatória do nosso mundo tecno-feudal

Nenhuma escapatória do nosso mundo tecno-feudal

A economia política da Era Digital permanece virtualmente terra incógnita

A economia política da Era Digital permanece virtualmente terra incógnita. Em Technoféodalisme , publicado três meses atrás em França (ainda não há tradução), Cedric Durand, economista da Sorbonne, efectua um serviço público crucial pois examina a nova Matrix que controla todas as nossas vidas.

Durand coloca a Era Digital no contexto mais vasto da evolução histórica do capitalismo a fim de mostrar como o consenso de Washington acabou por ser metastaziado no consenso de Silicon Valley. Numa reviravolta deliciosa, ele baptiza este novo bosque como a “ideologia californiana”.

Estamos longe do Jefferson Airplane [1] e dos Beach Boys; é mais como a “destruição criativa” de Schumpeter com esteróides, completada com “reformas estruturais” estilo FMI enfatizando a “flexibilização” do trabalho e a total marquetização/financiarisação da vida quotidiana.

De modo crucial, desde o início a Era Digital foi associada à ideologia da direita. A incubação foi fornecida pela Fundação Progresso e Liberdade ( Progress and Freedom Foundation, PFF ), activa de 1993 a 2010 e convenientemente financiada, entre outros, pela Microsoft, At&T, Disney, Sony, Oracle, Google, e Yahoo.

Em 1994, a PFF realizou uma conferência pioneira em Atlanta que acabou por conduzir a uma Carta Magna seminal: literalmente, o Cyberspace and the American Dream: a Magna Carta for the Knowledge Era (Ciberespaço e o Sonho Americano: uma Carta Magna para a Era do Conhecimento), publicada em 1996, durante o primeiro mandato Clinton.

Não por acaso, a revista Wired foi fundada, tal como a PFF, em 1993, tornando-se instantaneamente o porta-voz da “ideologia californiana”.

Entre os autores da Magna Carta descobrimos o futurista Alvin “Choque do Futuro” Tofler e o antigo conselheiro científico de Reagan, George Keyworth. Antes de quaisquer outros, eles já estavam a conceptualizar “o ciberespaço como um ambiente biolectrónico que é literalmente universal”. Sua Magna Carta era o mapa privilegiado para explorar a nova fronteira.

Aqueles heróis randianos

Também não por acidente, a guru intelectual da nova fronteira foi Ayn Rand e a sua dicotomia bastante primitiva entre os “pioneiros” e a multidão. Rand declarava que o egoísmo é bom, o altruísmo é mau e a empatia é irracional.

Quando se trata dos novos direitos de propriedade do novo Eldorado, todo o poder deve ser exercido pelos “pioneiros” do Vale do Silício, um bando de Narcisos apaixonado pela sua imagem espelhada de superiores heróis randianos. Em nome da inovação, deveriam ser autorizados a destruir quaisquer regras estabelecidas, num alvoroço schumpeteriano de “destruição criadora”.

Isso levou ao nosso ambiente actual, em que a Google, Facebook, Uber e companhia podem ultrapassar qualquer quadro legal, impondo as suas inovações como um facto consumado.

Durand vai ao cerne da questão quando trata da verdadeira natureza da “dominação digital”: a liderança estado-unidense nunca foi alcançada devido às forças de mercado espontâneas.

Exactamente pelo contrário. A história do Vale do Silício está absolutamente dependente da intervenção estatal – especialmente via complexo industrial-militar e complexo aero-espacial. O Centro de Investigação Ames, um dos melhores laboratórios da NASA, encontra-se em Mountain View. Stanford foi sempre premiada com sumarentos contratos de investigação militar. Durante a II Guerra Mundial, a Hewlett Packard, por exemplo, florescia graças à sua electrónica utilizada para fabricar radares. Ao longo da década de 1960, os militares americanos compraram a maior parte da ainda incipiente produção de semicondutores.

The Rise of Data Capital , um relatório de 2016 da MIT Technology Review produzido “em parceria” com a Oracle, mostrou como as redes digitais abrem o acesso a um novo subsolo virgem repleto de recursos: “Aqueles que chegam primeiro e assumem o controlo obtêm os recursos que procuram” – sob a forma de dados.

Assim, tudo, desde imagens de videovigilância e bancos electrónicos até amostras de ADN e bilhetes de supermercado, implica alguma forma de apropriação territorial. Aqui vemos em toda a sua glória a lógica extractivista embutida no desenvolvimento da Big Data.

Durand dá-nos o exemplo do Android a fim de ilustrar a actuação da lógica extractivista. O Google fez com que o Android fosse gratuito para todos os smartphones de modo a adquirir uma posição estratégica no mercado, batendo o ecossistema Apple e tornando-se assim o ponto de entrada padrão da Internet para praticamente todo o planeta. É assim de facto que se constrói um império online imensamente valioso.

O ponto-chave é que qualquer que seja o negócio original – Google, Amazon, Uber – as estratégias de conquista do ciberespaço apontam todas para o mesmo alvo: assumir o controlo de “espaços de observação e captura” de dados.

Acerca do sistema de crédito chinês…

Durand apresenta uma análise finamente equilibrada do sistema de crédito chinês – um sistema híbrido público/privado lançado em 2013 durante o 3º plenário do 18º Congresso do PCC, sob a palavra-de-ordem “valorizar a sinceridade e punir a insinceridade”.

Para o Conselho de Estado, a suprema autoridade governamental na China, o que realmente importava era encorajar o comportamento considerado responsável nas esferas financeira, económica e sócio política – e sancionar o que não fosse. É tudo uma questão de confiança. Pequim define isto como “um método de aperfeiçoamento do sistema socialista de economia de mercado que melhora a governação social”.

A expressão chinesa – shehui xinyong – perde-se totalmente com a tradução no Ocidente. Muito mais complexo do que “crédito social”, trata-se mais de “confiança”, no sentido da integridade. Em vez das vulgares acusações ocidentais de ser um sistema orwelliano, as prioridades incluem o combate contra a fraude e a corrupção a nível nacional, regional e local, às violações de regras ambientais, ao desrespeito de normas de segurança alimentar.

A gestão cibernética da vida social está a ser seriamente discutida na China desde a década de 1980. De facto, desde os anos 40, como vimos no Pequeno Livro Vermelho de Mao. Pode ser visto como inspirado pelo princípio maoísta das “linhas de massa”, como em “começar pelas massas para voltar às massas: acumular as ideias das massas (que estão dispersas, não sistematizadas), concentrá-las (em geral ideias e sistemáticas), depois voltar às massas para as difundir e explicá-las, garantindo que as massas as assimilam e as põem em acção, e verificar na acção das massas a pertinência destas ideias”.

A análise de Durand vai um passo além de The Age of Surveillance Capitalism (A era do capitalismo de vigilância), de Soshana Zuboff quando ela finalmente atinge o ponto central da sua tese, mostrando como as plataformas digitais se tornam “feudos”: elas vivem e lucram com o seu vasto “território digital” povoado com dados mesmo quando elas bloqueiam o poder sobre os seus serviços, os quais são considerados indispensáveis.

E, tal como no feudalismo, feudos dominam território pela fixação de servos. Os senhores ganhavam a vida lucrando com o poder social derivado da exploração do seu domínio e isso implicava um poder ilimitado sobre os servos.

Tudo isto explica a concentração total. O enérgico Peter Thiel do Vale do Silício sempre salientou que o objectivo do empresário digital é exactamente ultrapassar a concorrência. Como mencionado em Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, Thiel declarava: “O capitalismo e a competição são antagónicos. Competição é para os perdedores”.

Por isso, agora estamos a enfrentar não um mero choque entre o capitalismo do Vale do Silício e o capital financeiro, mas realmente um novo modo de produção: uma turbo-capitalista sobrevivência como capitalismo rentista, onde os gigantes do silício tomam o lugar das propriedades e também do Estado. Esta é a opção “tecno-feudal”, tal como definida por Durand.

Blake encontra-se com Burroughs

O livro de Durand é extremamente relevante para mostrar como a crítica teórica e política da Era Digital ainda é escassa. Não existe uma cartografia precisa de todos esses esquivos circuitos de extracção de receitas. Nenhuma análise de como lucram com o casino financeiro – especialmente os mega fundos de investimento que facilitam a hiper-concentração. Ou como lucram com a exploração árdua dos trabalhadores na gig economy. [2]

A concentração total do globo digital, como recorda Durand, está a conduzir a um cenário já imaginado por Stuart Mill, em que cada terra num país pertencia a um único senhor. A nossa dependência generalizada em relação aos senhores digitais parece ser “o futuro canibal do liberalismo na era dos algoritmos”.

Haverá uma saída possível? A tentação é ir ao radicalismo – um cruzamento entre Blake e Burroughs. Temos de expandir o nosso âmbito de compreensão – e parar de confundir o mapa (como mostrado na Carta Magna) com o território (a nossa percepção).

William Blake , nas suas visões proto-psicodélicas, tratava de libertação e subordinação – descrevendo uma divindade autoritária que impunha a conformidade através de uma espécie de código fonte de influência de massas. Parece uma proto-análise da Era Digital.

William Burroughs conceptualizou o Controlo – um conjunto de manipulações que incluía os mass media (ele ficaria horrorizado com os media sociais). Para romper o Controlo, temos de ser capazes de hackear e romper os seus programas centrais. Burroughs mostrou como todas as formas de Controlo devem ser rejeitadas – e derrotadas: “As figuras de autoridade são vistas pelo que são: máscaras mortas e vazias manipuladas por computadores”.

Eis o nosso futuro: hackers ou escravos.

[1] Jefferson Airplane: banda de rock psicodélico nos EUA
[2] Gig economy : inclui os que trabalham como fornecedores independentes em plataformas online; empresas de aluguer de mão-de-obra; trabalhadores que se comprometem a estarem disponíveis para quando for necessário (on call) e trabalhadores temporários. Os Gig trabalhadores fazem acordos formais com empresas que atendem pedidos (on demand) a fim de fornecerem serviços aos clientes das mesmas.